Os primeiros capítulos...
Prólogo
Tinha acabado de chegar a casa. Coloquei as
chaves na mesinha do hall de entrada
e acendi as luzes da sala. A Deborah, como vinha sendo hábito sempre que eu
metia um pé dentro do nosso refúgio, estava deitada sobre a cama. Mal passava
das nove da noite e já ela se encontrava enrolada nos lençóis a dormir - ou a
fingir dormir.
Sentei-me no sofá na tentativa de
ver televisão. Olhei à minha volta e senti um vazio tão grande que até me
vieram lágrimas aos olhos.
- Então, pah! Os homens não
choram. - disse para mim mesmo.
Naquela altura, era assim, as
lágrimas escorriam-me pelos olhos e imagino o que o meu pai diria se me visse
chorar. Mas não me conseguia conter porque a situação incomodava-me e não sabia
quanto tempo mais aguentaria sem tomar qualquer providência. Não era velho mas
também não era novo. Não podia continuar a viver como se nada se passasse. Não
funcionávamos como casal… Já tínhamos sido… Desconhecia onde nos tínhamos
perdido, mas a realidade estava ali mesmo em frente aos meus olhos e já não a
podia ignorar. Não éramos felizes e ponto
final.
Lembro-me bem de quando nos conhecemos
tudo parecia mágico, não havia um dia em que não estivéssemos juntos e, quando
não estávamos juntos passávamos horas ao telefone. Antes de ir para a escola,
passava pela casa dela e íamos de mão dada… Nas aulas, sentávamo-nos na mesma
carteira e estudávamos juntos... Fomos para a mesma faculdade e fizemos o mesmo
curso. Sempre juntos e nunca fartos um do outro. Casar, era o único passo a
seguir - tão essencial quanto respirar - e assim o fizemos. O casamento foi de
sonho: ela sempre quis casar como uma princesa e, tanto eu quanto os seus pais,
fizemos questão que tal desejo se tornasse real. Quando a vi entrar na igreja,
o coração bateu descompassado e eu morri. Lembro-me de ter ressuscitado, quando
o padre nos declarou marido e mulher e me permitiu beijar a noiva. Os nossos
lábios juntaram-se e a cor voltou-me às faces. Apesar de tantos beijos
trocados, de tantas noites de amor que tínhamos vivido, aquele beijo diante de
Deus fez-me renascer enquanto novo homem. Saí da igreja como marido, protetor e
príncipe encantado da Deborah. Tinha de garantir que a partir desse momento
nada lhe faltaria. Não podia faltar à minha promessa perante Deus: amar,
respeitar, cuidar, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza até que a
morte nos separasse.
Durante os primeiros anos fomos
felizes. Fomos até muito felizes. Embora trabalhássemos em empresas diferentes,
as noites eram passadas em conjunto. Cozinhávamos juntos para aproveitar o
tempo e apreciávamos as refeições de olhos nos olhos e de mãos nas mãos. Não
sei dizer exatamente quando isso começou a mudar, mas os jantares a dois
diminuíram gradualmente, as férias deixaram de existir, os planos em conjunto
deixaram de se concretizar…
Calma… Engano-me a mim mesmo. Sei
bem quando as coisas começaram a ruir: foi com o primeiro primeiro teste de
gravidez. A desilusão espelhada na cara da Deborah quando o sinal deu negativo
foi o começo de tudo. As três gravidezes que nunca passaram do primeiro
trimestre, as noites de choro após a médica dizer que lhe seria fisiologicamente
impossível gerar uma criança… Ela nunca poderia ser mãe, a dor que isso lhe
causou… Os beijos e os abraços que lhe dei para amenizar essa dor, os presentes
e as viagens na tentativa de voltar a vê-la sorrir, o misto de alegria e dor
quando os nossos amigos nos ligavam a contar que iam ser pais… Sei que lhe
custou muito e sei o quanto lhe doeu. Tentei aparar-lhe a dor, mas a meu ver só
um filho poderia trazer-me de volta a minha Deborah.
Sugeri adotarmos uma criança. Ela
olhou-me nos olhos como que se me fosse fulminar e disse-me que nunca seria a
mesma coisa. Ela queria um filho que tivesse os meus olhos e o seu sorriso, um
filho que fosse adorável como ela e ajuizado como eu, um filho que lhe fizesse
lembrar o nosso amor… Como poderia amar uma criança adotada da mesma forma que
se ama um filho que se gera dentro do próprio corpo? Os laços que se formam
durante a gravidez, o amor que cresce de dia para dia, de movimento para
movimento, de pontapé para pontapé… Isso, na sua opinião, seria impossível de
recriar. Eu tentei explicar-lhe que não… Que o amor por uma criança adotada
nasce no primeiro dia em que a vemos… Nasce no dia em que decidimos que esta
criança será nossa para sempre. E esse amor cresce de dia para dia, de abraço
para abraço, de beijo para beijo… Eu acredito realmente nisso. Acho que pai ou
mãe é quem cuida e quem cria. Fazer um filho, para a maioria, é fácil. Amar e
cuidar de um filho não é para qualquer um. Acho que a Deborah pensou que eu
apenas lhe disse isso por dizer ou para a fazer sentir melhor.
Um dia, numa discussão acesa,
pediu-me que a deixasse. Que fosse ter com uma mulher que fosse cem por cento
mulher, uma mulher que pudesse dar-me os filhos que eu tanto queria. Respondi
irritado que era isso mesmo que ia fazer. Abri a porta e saí disparado de casa.
Quando dei o primeiro passo e respirei fundo, revi a forma como olhou para mim no
momento em que proferi tais palavras. Percebi que tinha cometido um erro
imperdoável, mas já as tinha dito e não as podia retirar. E, nesse dia, nesse
dia perdi a Deborah. Relembrando os acontecimentos, apercebi-me de que nesse
mesmo dia também perdi o que ainda restava do nosso casamento.
Sentado no sofá, limpei os olhos
marejados de lágrimas.
- Os homens não choram… - repeti
baixinho para mim.
Levantei-me e fui à cozinha
procurar algo para comer. Lá se foram os dias em que a Deborah deixava comida
para mim, lá se foram os dias em que cozinhávamos em conjunto, enfim, lá se
foram os dias em que éramos felizes. Ao subir para o quarto ouvia-a soluçar.
Senti uma vontade enorme de galgar as escadas e abraçá-la. Eu era o seu
príncipe encantado, tinha de fazer alguma coisa… A verdade é que eu já não
sabia como. Parei a meio e desci as escadas como um cobarde. Foi ridículo.
Aquilo tudo foi ridículo. Eu a chorar na sala, ela a chorar no quarto e nenhum
dos dois era capaz de confortar a cara-metade.
“Na alegria e na tristeza…”, até
parecia uma maldição. “Até que a morte nos separe…”, mas seria aquilo a morte?
Será que estávamos ambos mortos e não sabíamos? Será que tínhamos morrido os
dois no momento em que a médica deu o maldito diagnóstico de que o nosso amor
nunca geraria frutos?
- Chega! Chega! Isto tem de
acabar. - vociferei para mim mesmo.
- Há que dar a volta a isto!
Tenho 38 anos… Estamos juntos há mais de 20 anos, mas ainda temos uma vida pela
frente. Não é esta morte em vida que nos vai separar. - decidi, naquele momento, lutar com todas as
forças que tinha para salvar o meu casamento.
Lembrei-me que quando nos
conhecemos, a Deborah gostava muito de dançar. Tinha uma amiga angolana e
aprendeu a dançar Kizomba com ela. Iam a matinés para uma discoteca chamada RockLine,
situada em Loures, e dançavam a tarde toda. Eu nunca soube dançar e
quando começámos a namorar ela deixou de ir. No início tentou ensinar-me e
incutir em mim o gosto pela dança, mas sempre fui um “cortes” e nunca me
interessei. Dizia-lhe que a nossa dança era na cama. Há uns anos atrás, antes
de a nossa vida se desmoronar, ela inscreveu-nos aos dois numas aulas de
Kizomba ao pé de casa. Eu fui a duas aulas e recusei-me a voltar. Os meus dois
pés esquerdos traíram-me e em vez de nos divertirmos acabámos por discutir e
sair de lá mais frustrados. Confesso que podia ter tentado mais um pouco, ter
feito um esforço maior, até porque ela se mostrou tão contente quando eu lhe
disse que sim, que ia consigo aprender a dançar. Lembro-me do abraço e do beijo
que me deu como se fosse ontem. Disse que eu era o melhor marido do mundo.
Era isso mesmo… Eu ia
inscrever-nos aos dois numa escola de Kizomba! Ela sempre me tinha dito que
Kizomba era a dança dos amantes e que se eu não dançasse com ela teria de
deixar de dançar por não achar apropriado enroscar-se noutro gajo qualquer.
Quem sabe se dançar não traria aquela proximidade que tínhamos perdido? Quem
sabe se não nos relembraríamos de como se abraça e de como se beija? Quem sabe se
não voltaríamos a dançar na cama? Parecia um plano desesperado de um
adolescente, mas era o único que eu tinha nesse momento. Era a minha única
ideia para tentar salvar o meu casamento.
- Até que a morte nos separe… - nada disso.
- Até que a dança nos junte… -
encorajei-me.
- Deborah, minha Deborah, vou
encontrar o caminho de volta para ti. Vou aprender a dançar nos teus braços.
Vou voltar a sentir o teu cheiro, meu amor. O teu príncipe encantado vai a
caminho. Espera por mim só mais um pouquinho… - falei baixinho com um brilho de
esperança nos olhos e um sorriso triste nos lábios.
O futuro do meu casamento
dependia dos meus dois pés esquerdos.
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