quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Amor de Amor - Um Conto



O que acontece quando duas almas se amam e temem que a afirnação pública desse sentimento o estrague?
Consegue-se amar uma vida inteira sem o falar abertamente?

Amor de Amor


 

I

 

“És o meu amor!” Pensava ela para si quando o olhava nos olhos. “És o meu amor!”. Tão simples quanto isso. Ela amava-o e ele era o seu amor. Aquele amor… O Amor, sabes?

Aquele amor que se quer escrever com letra grande: Amor!

Aquele amor que se quer gritar alto, bem alto, com todas as forças dos nossos pulmões: AMOR!

Aquele amor que dá um friozinho na barriga e uma volta ao estomâgo só de se pensar que se pode perder. Aquele amor… O Amor, sabes?


 
II

 

“És o meu amor!” Pensava ela para si quando o olhava nos olhos. “És o meu amor!”. Só era uma pena que ele não o soubesse. Eram amigos há tantos anos. Já partilharam tantos momentos. Tantas e tantas coisas viveram juntos.

Mas ele não sabia que era o seu amor. Tantas foram as noites em claro a falar dos planos para o futuro, a planear as suas vidas em separado. Tantas foram as vezes que na brincadeira ela propôs que as vivessem em conjunto. E ele sempre no seu jeito de menino sorria e dizia que nunca se iriam separar. Amava-a, como a uma irmã. Aquela que nunca teve…

E ela respondia sempre com a voz sumida: “Eu amo-te claro, és tudo para mim…”. E por segundos sentavam-se ambos em silêncio a contemplar as estrelas, até que ele cortava o silêncio com uma nova história ou piada.

Tantas foram as vezes que ela quis perguntar o que ele pensava naqueles momentos. Será que secretamente ele também a amava? Seria pedir demais? Seria sonhar alto demais? Mas estava grata. Já partilharam tantos momentos. Tantas e tantas coisas viveram juntos.


 
III

 

“És o meu amor!” Pensava ela para si quando o olhava nos olhos. “És o meu amor!”. E perdia-se na intensidade do seu olhar. Deixava-se ir no espelho da sua alma. Transportava-se para dentro do seu ser.

O mundo através dos seus olhos valia a pena ser vivido. Os obstáculos valiam a pena de ser ultrapassados. Os sonhos valiam a pena ser sonhados. A felicidade ganhava uma maior intensidade. Não existiam problemas, só soluções. Tudo fazia mais sentido quando visto pelos seus olhos.

É tão bom amar assim. É tão bom amar deste jeito. Daquele jeito em que nos sentimos seguras. Daquele jeito em que acordamos a sorrir e nos deitamos a sorrir. Daquele jeito em que nos apanhamos a sonhar acordadas. Daquele jeito que mesmo sem música nos dá vontade para dançar. Amar sem questões. Amar só por amar.

E ela amava-o assim. Tão forte, tão profundo. De uma forma até difícil de explicar. De uma forma que não havia nada para cobrar. De uma forma que bastava estar ali, só pertinho dele. Juntinho. A falar de coisas sérias ou de baboseiras. Ali… juntinho. Que forma tão linda de amar. E por amá-lo tanto assim, deixava-se ir no espelho da sua alma. Transportava-se para dentro do seu ser.


 
IV

“És o meu amor!” Pensava ela para si quando o olhava nos olhos. “És o meu amor!”. E guardava em sua memória todas as suas feições. E o contorno do seu rosto. Memorizava cada nova linha de expressão. Fechava os olhos e conseguia desenhá-lo. Esculpi-lo com olhos vendados. Encontrá-lo no meio de uma multidão. Reconhecia a sua respiração. Dançava ao ritmo do seu coração.

Mas como pode alguém amar assim sem ninguém o saber? Mantinha a sua paixão em segredo. E quando perguntavam quando iria arranjar namorado, respondia num tom apressado que agora era tempo de estudar. Tempo de organizar a vida. Tempo de se tornar efetiva no trabalho. Tempo de apostar na carreira. E o tempo sendo tempo, sempre a passar. Mas quem precisa de namorar quando passa toda a sua vida a amar?

Das namoradas que ele teve, perdeu a conta. E como bela confidente arranjava sempre um defeito. “Aquela é feia. Esta fala muito. Aquela é muito baixa. Esta nunca fala. Aquela está sempre grudada em ti. Esta nunca tem tempo para ti.” E quando ele reclamava e perguntava como teria de ser a sua namorada para que ela a aprovasse, ela respondia num tom de voz sumido: “Olha tem de ser assim como eu. Parecida comigo. Tem de estar sempre junto de ti. Tem de te apoiar. Tem de te chamar à razão. Basicamente tem de te amar. Assim como eu!”. Ele sorria e dizia que assim nunca ia casar, porque ela era única…

Sim ela era única. Era provavelmente a única que o amava pelo que ele foi, pelo que ele era, pelo que ele algum dia seria. Ela era provavelmente a única que o encontrava no meio da multidão, que reconhecia a sua respiração… Dançava ao ritmo do seu coração.

 
 

V

“És o meu amor!” Pensava ela para si quando o olhava nos olhos. “És o meu amor!”. E aceitou esse amor como uma condição. Nunca tentou descobrir de onde veio, quando veio ou porque ficou. Nunca tentou desvendar o mistério desse amor. Nunca tentou julgar esse amor.

Quando se ama alguém, temos a tendência a tentar descobrir o que fez com que esse amor nascesse. Tentamos encontrar o momento, aquele momento em que passou de afeição, passou de atracção, passou de paixão e tornou-se amor.

As crianças têm uma tendência a amar. Amam porque amam a descoberta. Tudo é novo. Tudo tem o seu mistério. A beleza das coisas à sua volta advém da ignorância. Tudo é lindo. Tudo é novo. Tudo é visto sem maldade. As coisas aceitam-se pelo que elas são. A luz é linda porque ilumina. Como o faz não interessa. O arco irís é lindo porque reflete um padrão de cores num céu normalmente monocrómico. Porque é que a luz é luz? Não interessa! É linda! E ama-se simplesmente por ser. O arco irís é lindo porque é! E ama-se simplesmente por ser.

A tentativa de racionalização de todos os fenómenos estraga a sua beleza. Destrói a sua beleza. Destrói porque deixamos de ser crianças e começamos a perguntar. Começamos a explicar palavra por palavra porque é que a luz é luz. Como se forma o arco íris. Racionalizamos a beleza, racionalizamos o mistério e deixamos de o amar. Mas este amor… Este amor ela nunca o questionou e nunca o racionalizou. É belo simplesmente por ser. É amor por ser amor. Nunca violou a sua beleza com questões que apenas servem para vulgarizá-lo. Ama-o e aceitou. Aceitou esse amor. Nunca tentou desvendar o mistério desse amor. Nunca tentou julgar esse amor.


 
VI

“És o meu amor!” Pensava ela para si quando o olhava nos olhos. “És o meu amor!”. E entregou-se a ele de corpo e alma. Mesmo sem ele o pedir. Mesmo sabendo que a sua alma podia não ser dela. Entregou-se. Deixou-se levar. Deixou-se viver em função desse amor.

Tudo à sua volta seguia o seu curso sem parar. O tempo sendo tempo, continuava a passar. Cresceu. Tornou-se de menina em mulher. E o seu amor permaneceu sempre ali no mesmo lugar. Preso por magia no seu olhar.

E sentia-se impotente. Um amor como este teria de se fazer notar. Pensava várias vezes em declarar-se, em render-se ao desejo de cair em seus braços. Em sentir o calor do seu beijo. Em sentir a fragrância do seu corpo. Mas como poderia ela trair este amor? Um amor como este teria de se fazer notar! Tantas foram as vezes que ficaram em silêncio de mãos dadas. Aquele formigueiro que surgia na ponta dos dedos e viajava por toda a extensão do seu corpo era impossível de passar despercebido. Ele sabia. Ele sentia. Só podia. Mas algo o impedia de avançar.

Teve vários pretendentes. Vários homens juraram amor eterno. Prometeram mundos e fundos em troca de uma oportunidade para que ela se deixasse amar. Mas não podia. Era impossível. Todos os outros lhe eram indiferentes. Ela não podia oferecer algo que não lhe pertence. Ela era dele. Só dele. Entregou-se. Deixou-se levar. Deixou-se viver em função desse amor.



VII

“És o meu amor!” Pensava ela para si quando o olhava nos olhos. “És o meu amor!”. Tão simples quanto isso. Ela amava-o e ele era o seu amor. Aquele amor… O Amor, sabes?

E quando se deu conta já não era menina, já não era moça. E o amor cresceu com ela. O amor cresceu nela, sem nunca o declarar. Já era velhinha, já era tarde. Já não tinha forças para gritar, Amor!

E quando a sua hora chegou sentia-se feliz. Sentia que conseguiu guardar o seu amor. Mantê-lo ali só para si. E guardando esse amor, manteve-o a ele sempre ao pé de si. Sempre ao seu lado em todas as situações da sua vida. Com ele partilhou tudo menos a cama. Manteve o seu amor puro, porque nunca o tentou desvendar, nunca o tentou apagar, nunca o tentou consumar.

Mas agora que as forças abandonavam o seu corpo, de que adiantava guardar esse segredo? Para aonde mais iria levar esse amor? E bem baixinho, com a voz meio sumida disse-lhe ao ouvido: “Sabes? Por todos estes anos tens sido o meu amor. Aquele amor que dava até medo de dizer que era amor. Aquele amor que me acompanhou em todas as fases da minha vida. Aquele amor que dá um friozinho na barriga e uma volta ao estomâgo só de se pensar que se pode perder. Aquele amor… O Amor, sabes?”

E ele bem baixinho, com lágrimas a rolarem os olhos, respondeu: “Eu sei que sou o teu amor. Tu sempre fostes o meu amor. Aquele amor que não podia perder. Aquele amor que tinha de guardar só para mim. Aquele amor que temia que ao tornar-se publico fosse desvendado, fosse racionalizado, que fosse exterminado. Aquele amor que me fazia acordar todos os dias feliz por saber que tinha só para mim. Assim bem dentro do meu coração. E carreguei-o comigo toda a vida dentro do meu coração. E alimentava-o com o teu sorriso, com o teu olhar, com a tua beleza, com o teu silêncio, com a tua forma bela de me amar. E esse amor ficou amor, amor só de amor. Amor simplesmente por ser amor. Amor puro. Amor mistério. Amor de amor.”

“És o meu amor!” Disseram os dois em voz alta enquanto ela fechava os olhos. “És o meu amor!”. Tão simples quanto isso. Sem explicações. Eles amavam-se e viveram sem viver o seu grande amor. Aquele amor… O Amor, sabes?

Amor só por ser amor. Amor incondicional. Amor eterno. Amor de amor!

 

 
Adelaide Miranda, Setembro 2015