quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Náufraga


Perdida… Era assim que se sentia ultimamente. Completamente perdida, sem rumo, sem lugar...

Tinha uma vida boa, muito boa. Não sabia o porquê de sentir-se náufraga.

Tinha a certeza que o mundo estava completamente equivocado. Não bastava seguir as regras da sociedade, não bastava fazer tudo como manda o figurino, não bastava...

Deborah tinha 27 anos e a vida corria como tinha sido programada, por si, pelos seus pais, pela sociedade... Licenciada, casada e com um filho nos braços, tudo a seu tempo. Porém, algo sufocava o seu coração. Algo afligia a sua alma. Não sabia bem o que era. Precisava descobrir...

João, casado com Deborah, sentia-se o culpado da infelicidade da mulher. Sempre tentara de tudo para fazê-la feliz, mas não conseguia. Ao olhá-la nos olhos via um vazio, uma insatisfação... Moravam na casa com piscina que ela sempre mencionou, conduziam o carro que ela sempre mencionou, não lhes faltava nada... Faltava-lhe parte da alma...

- João... Acho que vou ausentar-me por uns tempos... – disse enquanto se preparava para ir para o trabalho.

- Ausentar, como assim?

- Preciso sair daqui... Já falei com a minha mãe para ficar com o Lucas por uns dias...

- Já falaste com a tua mãe? Ausentar-te? – colocou-se em frente ao espelho e olhou-a nos olhos – Não és feliz comigo, Deborah? É isso?

- João, sabes bem que não é isso... Eu sou feliz contigo... Não sou é feliz comigo, percebes? Preciso saber o que se passa comigo. Tenho tanto e no entanto...

- Amas-me, Deborah? Diz-me, por favor?

- Não sejas tolo... Amo-te a ti e ao nosso filho. Adoro a nossa vida, mas falta-me algo. Há algo que não estou a fazer. Algo que me está a faltar. Não consigo explicar, mas bem no fundo de mim sinto uma angústia, uma dor... Preciso sair daqui, percebes? Tentar entender o que se passa comigo.

- E vais para onde? – perguntou conformado com a decisão.

- Vou para a Serra do Gerês. Isolar-me, pensar... Entendes?

- Desde que prometas que não me vais deixar...

- Nunca! – Abraçou-o e beijou-o apaixonadamente. – Sou feliz por ter um homem como tu ao meu lado. Está na altura de dar-te a esposa que tu mereces.

Enquanto conduzia mil coisas passaram-lhe pela cabeça... Sentiu um aperto no estômago ao despedir-se do João e do Lucas, mas tinha de fazê-lo... Para o bem dela, para o bem deles...

Inicialmente teve dificuldade em concentrar-se, passou a maior parte do tempo a chorar. Chorou por tudo o que não tinha chorado e por tudo o que ainda haveria de chorar.

Com o passar das horas e dos dias conseguiu abstrair-se do mundo à sua volta e focar-se na imensidão do seu mundo interior. Descobriu memórias esquecidas e lembrou-se de quando tinha sido feliz pela última vez, antes do João, antes do Lucas, antes da faculdade...

Lembrou-se daquela tarde de Verão em que sentada na sala a ver “Música no Coração” cantou as músicas todas, junto com a irmã, dançou e imitou várias cenas do filme. Lembrou-se da promessa que fizeram uma à outra de que um dia iriam fazer o mesmo... Encenar, cantar, dançar tudo num só... Lembrou-se da paz que sentiu quando ambas se abraçaram e prometeram uma à outra nunca esquecer esse sonho...

Ali, naquele momento, Deborah percebeu. Percebeu o que a fazia infeliz: tinha-se se esquecido o que a fazia feliz, a ela própria. Seguiu os passos que os pais e a sociedade esperavam de si. Esqueceu-se do que ela tinha prometido a si mesma: ser feliz!

Nessa mesma noite voltou para casa. Abraçou o marido e o filho com tanta força... Abraçou-os e agradeceu a Deus que eles fizessem parte da sua vida.

- João, amanhã vou inscrever-me na escola de teatro. – Disse quando se preparavam para ir dormir.

- Escola de teatro? Não percebo... – Perguntou confuso.

- Sabes? Sempre quis ser actriz de teatro, fazer musicais... Esse era o meu sonho, antes de...

- A sério? Nunca me falaste sobre isso...

- Pois é, João... Esqueci-me do que realmente me fazia feliz. Do que alimentava a minha alma...

- Amor, se é isso que tu queres, força. Apoio-te no que foi preciso...

O tempo passou... As cortinas abriram-se e Deborah olhou para o público à sua frente. Sentiu uma breve dor no estômago e respirou fundo. Fechou os olhos e lembrou-se da promessa que fez à irmã...

A peça terminou e saiu do transe. O público levantou-se e aplaudiu. Na primeira fila, estava o seu João com lágrimas nos olhos. Deborah, sorriu, fez uma vénia e agradeceu ao público. Chorou também de emoção. Não foi fácil chegar ali, foram meses de aulas e meses de ensaios. Meses de dúvidas, medo e ansiedade. Ali, naquele palco, perante o público, pegou no leme do seu navio. Não era náufraga, Deborah, era finalmente a comandante do seu destino.


Adelaide Miranda, 05/10/2016
www.facebook.com/adelaidemirandaoficial

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