segunda-feira, 18 de julho de 2016

"Amor Traição e Kizomba"

Os primeiros capítulos...


Prólogo

Tinha acabado de chegar a casa. Coloquei as chaves na mesinha do hall de entrada e acendi as luzes da sala. A Deborah, como vinha sendo hábito sempre que eu metia um pé dentro do nosso refúgio, estava deitada sobre a cama. Mal passava das nove da noite e já ela se encontrava enrolada nos lençóis a dormir - ou a fingir dormir.
Sentei-me no sofá na tentativa de ver televisão. Olhei à minha volta e senti um vazio tão grande que até me vieram lágrimas aos olhos.
- Então, pah! Os homens não choram. - disse para mim mesmo.
Naquela altura, era assim, as lágrimas escorriam-me pelos olhos e imagino o que o meu pai diria se me visse chorar. Mas não me conseguia conter porque a situação incomodava-me e não sabia quanto tempo mais aguentaria sem tomar qualquer providência. Não era velho mas também não era novo. Não podia continuar a viver como se nada se passasse. Não funcionávamos como casal… Já tínhamos sido… Desconhecia onde nos tínhamos perdido, mas a realidade estava ali mesmo em frente aos meus olhos e já não a podia ignorar. Não éramos felizes e ponto final.
Lembro-me bem de quando nos conhecemos tudo parecia mágico, não havia um dia em que não estivéssemos juntos e, quando não estávamos juntos passávamos horas ao telefone. Antes de ir para a escola, passava pela casa dela e íamos de mão dada… Nas aulas, sentávamo-nos na mesma carteira e estudávamos juntos... Fomos para a mesma faculdade e fizemos o mesmo curso. Sempre juntos e nunca fartos um do outro. Casar, era o único passo a seguir - tão essencial quanto respirar - e assim o fizemos. O casamento foi de sonho: ela sempre quis casar como uma princesa e, tanto eu quanto os seus pais, fizemos questão que tal desejo se tornasse real. Quando a vi entrar na igreja, o coração bateu descompassado e eu morri. Lembro-me de ter ressuscitado, quando o padre nos declarou marido e mulher e me permitiu beijar a noiva. Os nossos lábios juntaram-se e a cor voltou-me às faces. Apesar de tantos beijos trocados, de tantas noites de amor que tínhamos vivido, aquele beijo diante de Deus fez-me renascer enquanto novo homem. Saí da igreja como marido, protetor e príncipe encantado da Deborah. Tinha de garantir que a partir desse momento nada lhe faltaria. Não podia faltar à minha promessa perante Deus: amar, respeitar, cuidar, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza até que a morte nos separasse.
Durante os primeiros anos fomos felizes. Fomos até muito felizes. Embora trabalhássemos em empresas diferentes, as noites eram passadas em conjunto. Cozinhávamos juntos para aproveitar o tempo e apreciávamos as refeições de olhos nos olhos e de mãos nas mãos. Não sei dizer exatamente quando isso começou a mudar, mas os jantares a dois diminuíram gradualmente, as férias deixaram de existir, os planos em conjunto deixaram de se concretizar…
Calma… Engano-me a mim mesmo. Sei bem quando as coisas começaram a ruir: foi com o primeiro primeiro teste de gravidez. A desilusão espelhada na cara da Deborah quando o sinal deu negativo foi o começo de tudo. As três gravidezes que nunca passaram do primeiro trimestre, as noites de choro após a médica dizer que lhe seria fisiologicamente impossível gerar uma criança… Ela nunca poderia ser mãe, a dor que isso lhe causou… Os beijos e os abraços que lhe dei para amenizar essa dor, os presentes e as viagens na tentativa de voltar a vê-la sorrir, o misto de alegria e dor quando os nossos amigos nos ligavam a contar que iam ser pais… Sei que lhe custou muito e sei o quanto lhe doeu. Tentei aparar-lhe a dor, mas a meu ver só um filho poderia trazer-me de volta a minha Deborah.
Sugeri adotarmos uma criança. Ela olhou-me nos olhos como que se me fosse fulminar e disse-me que nunca seria a mesma coisa. Ela queria um filho que tivesse os meus olhos e o seu sorriso, um filho que fosse adorável como ela e ajuizado como eu, um filho que lhe fizesse lembrar o nosso amor… Como poderia amar uma criança adotada da mesma forma que se ama um filho que se gera dentro do próprio corpo? Os laços que se formam durante a gravidez, o amor que cresce de dia para dia, de movimento para movimento, de pontapé para pontapé… Isso, na sua opinião, seria impossível de recriar. Eu tentei explicar-lhe que não… Que o amor por uma criança adotada nasce no primeiro dia em que a vemos… Nasce no dia em que decidimos que esta criança será nossa para sempre. E esse amor cresce de dia para dia, de abraço para abraço, de beijo para beijo… Eu acredito realmente nisso. Acho que pai ou mãe é quem cuida e quem cria. Fazer um filho, para a maioria, é fácil. Amar e cuidar de um filho não é para qualquer um. Acho que a Deborah pensou que eu apenas lhe disse isso por dizer ou para a fazer sentir melhor.
Um dia, numa discussão acesa, pediu-me que a deixasse. Que fosse ter com uma mulher que fosse cem por cento mulher, uma mulher que pudesse dar-me os filhos que eu tanto queria. Respondi irritado que era isso mesmo que ia fazer. Abri a porta e saí disparado de casa. Quando dei o primeiro passo e respirei fundo, revi a forma como olhou para mim no momento em que proferi tais palavras. Percebi que tinha cometido um erro imperdoável, mas já as tinha dito e não as podia retirar. E, nesse dia, nesse dia perdi a Deborah. Relembrando os acontecimentos, apercebi-me de que nesse mesmo dia também perdi o que ainda restava do nosso casamento.
Sentado no sofá, limpei os olhos marejados de lágrimas.
- Os homens não choram… - repeti baixinho para mim.
Levantei-me e fui à cozinha procurar algo para comer. Lá se foram os dias em que a Deborah deixava comida para mim, lá se foram os dias em que cozinhávamos em conjunto, enfim, lá se foram os dias em que éramos felizes. Ao subir para o quarto ouvia-a soluçar. Senti uma vontade enorme de galgar as escadas e abraçá-la. Eu era o seu príncipe encantado, tinha de fazer alguma coisa… A verdade é que eu já não sabia como. Parei a meio e desci as escadas como um cobarde. Foi ridículo. Aquilo tudo foi ridículo. Eu a chorar na sala, ela a chorar no quarto e nenhum dos dois era capaz de confortar a cara-metade.
“Na alegria e na tristeza…”, até parecia uma maldição. “Até que a morte nos separe…”, mas seria aquilo a morte? Será que estávamos ambos mortos e não sabíamos? Será que tínhamos morrido os dois no momento em que a médica deu o maldito diagnóstico de que o nosso amor nunca geraria frutos?
- Chega! Chega! Isto tem de acabar. - vociferei para mim mesmo.
- Há que dar a volta a isto! Tenho 38 anos… Estamos juntos há mais de 20 anos, mas ainda temos uma vida pela frente. Não é esta morte em vida que nos vai separar. -  decidi, naquele momento, lutar com todas as forças que tinha para salvar o meu casamento.
Lembrei-me que quando nos conhecemos, a Deborah gostava muito de dançar. Tinha uma amiga angolana e aprendeu a dançar Kizomba com ela. Iam a matinés para uma discoteca chamada RockLine, situada em Loures, e dançavam a tarde toda. Eu nunca soube dançar e quando começámos a namorar ela deixou de ir. No início tentou ensinar-me e incutir em mim o gosto pela dança, mas sempre fui um “cortes” e nunca me interessei. Dizia-lhe que a nossa dança era na cama. Há uns anos atrás, antes de a nossa vida se desmoronar, ela inscreveu-nos aos dois numas aulas de Kizomba ao pé de casa. Eu fui a duas aulas e recusei-me a voltar. Os meus dois pés esquerdos traíram-me e em vez de nos divertirmos acabámos por discutir e sair de lá mais frustrados. Confesso que podia ter tentado mais um pouco, ter feito um esforço maior, até porque ela se mostrou tão contente quando eu lhe disse que sim, que ia consigo aprender a dançar. Lembro-me do abraço e do beijo que me deu como se fosse ontem. Disse que eu era o melhor marido do mundo.
Era isso mesmo… Eu ia inscrever-nos aos dois numa escola de Kizomba! Ela sempre me tinha dito que Kizomba era a dança dos amantes e que se eu não dançasse com ela teria de deixar de dançar por não achar apropriado enroscar-se noutro gajo qualquer. Quem sabe se dançar não traria aquela proximidade que tínhamos perdido? Quem sabe se não nos relembraríamos de como se abraça e de como se beija? Quem sabe se não voltaríamos a dançar na cama? Parecia um plano desesperado de um adolescente, mas era o único que eu tinha nesse momento. Era a minha única ideia para tentar salvar o meu casamento.
- Até que a morte nos separe… -  nada disso.
- Até que a dança nos junte… - encorajei-me.
- Deborah, minha Deborah, vou encontrar o caminho de volta para ti. Vou aprender a dançar nos teus braços. Vou voltar a sentir o teu cheiro, meu amor. O teu príncipe encantado vai a caminho. Espera por mim só mais um pouquinho… - falei baixinho com um brilho de esperança nos olhos e um sorriso triste nos lábios.

O futuro do meu casamento dependia dos meus dois pés esquerdos.

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